quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Panis et circenses (Caetano Veloso – Gilberto Gil)

http://www.youtube.com/watch?v=BYibDbcb4yI

Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar

Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas na sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Preparei-lhe uma mesa para encher a vista.
Em toalha branca de renda, frutas coloridas:
Rubros morangos entre uvas verde-limão...
E salpiquei sob tudo gotas do meu prazer.
Foi assim, Romeu, que te conheci em meus sonhos.
Assim mesmo nos amamos na grama do parque
Quem poderia saber que nunca mais te reconheceria?
Teu rosto se misturou ao passado,
e, é agora um borrão de nuvens negras.
Molha-me, Romeu, com teus lábios picantes.
Aviva em mim a memória perdida
entre as folhas do gramado. 


Não há nada mais a ser feito.
Perdeu-se por completo.
Afundado no colchão, entre os lençóis,
lá estava Romeu com rosto pálido
de sofrimento e prazer...
Lá estava o que sobrara de Romeu
Preso pelos punhos e solto pelo gozo...
Nada mais conseguiu fazer.
Irresistivelmente, serrou os olhos
e perdeu-se pelos encantos de Morfeu,
Madrugada inteira sonhando com uma ninfa
Ou uma maníaca que lhe dissecara pele e osso.
Como o carimbo de um reinado
marca vermelha no fundo da taça.
Restos de uma noite, apenas.
O gosto do vinho ficou,
o sal da tua pele, ficou, o cheiro
impregnado em meu corpo.
Simbologias de amargas lembranças,
súbita sensação de derrota.
Venceu-me teu olhar,
este que exerce um frio domínio
sobre meu corpo, exageradamente latejante...
Molhado, suado de desejo, mas morto,
sufocado pela culpa...
Nada me disse sua boca,
Porém os olhos me revelam
segredos muito íntimos.
Duas janelas abertas ao infinito,
Buracos negros sugando a minha soberania...
Tão gigante perto de outros
e frágil, frágil, frágil ao seu lado.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011


Entrava pelo corredor uma fresta de luz
iluminando a estranheza no olhar de Romeu.
Repassado de agonia,
furando o chão da sala com seus passos largos.
Nunca disse nada, apenas caminhou
entre gestos e pensamentos solitários.

Encostada na soleira da janela,
com o rosto embriagado de lágrimas,
observava, sem nenhuma esperança.
O chão engoliu Romeu,
O vento soprou a fumaça de seu cigarro,
O tempo devorou a beleza.


sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Sobre a Fidelidade

Não fitou-me nos olhos. Olhando de lado murmurou duas ou três palavras sobre amigos e um jogo. Foi direto para quarto. O chuveiro soou ruidosamente seus pingos no chão. Roupas e carteira reviradas. Os estilhaços da taça no chão. Vinho desperdiçado. Silêncio. 

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Chegou bem de fininho, suave, quase imperceptível.
Se ajeitou num cantinho, silencioso.
Nenhuma palavra, nada disse Romeu.
Apenas me tomou por completa.
Sem argumentos ou explicações.
Fiquei amolecida... perdida em horas de pensamentos.
...  passei a ouvir um blues e um desejo incontrolável entrou pela boca.
e o gosto da fumaça descia pela garganta quente e dilacerada pelo wisky barato.
Enquanto o mundo caminhava freneticamente com seus dilemas fúteis.
O blues teve fim como tudo, tudo que agrada...

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre a Solidão...

De manhã suporto bem, até gosto.
À tarde... pode ser uma boa companheira.
Mas, à noite sempre me tira o sono
e consome horas madrugada a dentro.

sábado, 13 de agosto de 2011

Sem Enfeite Nenhum

Adélia Prado, a poeta do cotidiano
Adélia Prado

A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?
Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.
Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.
Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.
Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.
Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.
Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.
Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.
Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.
Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.
Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.
Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.
Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.
Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.
Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.
Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.

O Senhor te abençoe e te guarde,
Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,
O Senhor te dê a Paz.

Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.

Era raiva não. Era marca de dor.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Ana C.

Tu Queres Sono: Despe-te dos Ruídos

Ana Cristina César, a musa da poesia marginal brasileira
 
Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.
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Deus na Antecâmara - Ana Cristina Cesar

Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)

Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sangüinária

(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)

Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero partir ao repartir

filho
pai
e
fogo
DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando

HOMEM: ACORDA!


Todas as manhãs seguro a xícara entre os dedos para sentir o calor do café.
E deixo escorrer entre as mãos a sua presença.
Romeu foi embora sem dizer adeus,
saiu de fininho na madrugada.
O tapete ficou preenchido de almofadas,
coberto de lembranças... de seu cheiro.
Ninguém disse que seria o último banho,
o vidente previu coisas diferentes.
Romeu, ah! Romeu.
Os papéis revirados na mesa falam de seu adeus.
As unhas roídas pelo chão.
O pó do grafite aponta o final.
Nada foi mudado,
a xícara permanece no mesmo lugar.
A cafeteira empoeirada sob o balcão
sente sua falta.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Pensando bem, ando rodeada de bons fluidos.
Mente fertil e corpo insano...
Por mais que queira entristecer
é impossível.
Felicidade em cada molécula do corpo.
Bolinhas de champagner fazendo cócegas no rosto
E pena na sola do pé... torturante, deliciosamente, torturante.
O sabor da seda tocando as pernas.
O gosto do perfume cítrico.
O cheiro dos sons desta voz.
Torturante, sim, mas delicioso.
Nada que disser vai ferir meu corpo.
Nenhuma palavra tua pode causar-me danos.
As janelas se abrem e fecham com o vento.
E as sombras das árvores brincam com a luz.
Uma revoada de araras passam e meus olhos fixos
não se perdem.
Um pequeno corte no dedo e só.
Dor pequena que passa rápido.
São só palavras que se perdem no tempo.
Palavras duras que batem na blindagem do meu rosto.
Nada que disser, nada, poderá ferir meu corpo.

sábado, 6 de agosto de 2011

Tinha muito a dizer, mas como não quisesse ouvi, calei-me.
Ignorou meus pedidos e me deixou encharcada de desejo, dormi.
Virei a noite ouvindo discos velhos, entre um espirro e outro, uma taça de vinho.
Fazia frio fora e dentro de mim.
Intermináveis as horas passaram, mas não vi o sol chegar.
Li poesias insanas que me entorpeceram a mente e me puseram louca.
Louca eu fico sempre quando você se vai.
A espera, sempre a espera de um gesto ou um olhar.
A espera, a espera de poder ir além do previsível.
Falo sempre primeiro e da mesma maneira me calo.
Me calo, pois não vou mais esperar,
Calo e fico com olhar fixo num ponto qualquer.
Qualquer ponto que não seja o seu olhar.